#Resenha: Meus Desacontecimentos - A história da minha vida com palavras (Eliane Brum)
Autora:
Eliane Brum
Páginas:
144
Editora: Leya
Editora: Leya
Ano
de publicação: 2014 (1ª edição)
Começo esse texto dizendo isso que: fui invadida. Mas tão invadida que não sei dizer o que é que
restou de quem eu era minutos antes. Sabe quando você se vê, de repente,
refletida em uma vitrine? Eu me vi refletida na escrita de Eliane Brum. Em Meus
Desacontecimentos, Eliane se rasga. Em Meus Desacontecimentos, Sâmela se despedaçada.
Onde fui parar eu depois que dali saí? Sei que não sou mais a mesma, pois ali
me vi de outra forma.
Eliane tem uma escrita avassaladora. Tão
natural e ao mesmo tempo tão chocante. Revoltada e delicada na mesma
intensidade. Enquanto falava de si, eu lia a mim. Enquanto lembrava sua
infância, eu lia minhas lembranças. Enquanto falava de amor, eu lia meus
desamores, desencontros e descontentamentos.
Fiquei pensando: como será que ela sabia tanto de mim sem que eu mesma
soubesse? Às penso que a escrita tem muito disso mesmo: incomodar e espetar no
fundo da alma para te fazer embarcar no seu eu profundo.
Ah, entendi: fui espetada também. Doeu?
Sim. Magoou? Claro. Feriu? Com certeza. Mas também renovou. Mas também
reconstruiu. Mas também brilhou dentro de minha imensa escuridão. Quando a
autora falou sobre sua avó, lembrei da minha. De como eu gostava realmente de
ouvi-la contar histórias, principalmente as de amor. E mesmo que ela as
repetisse dia após dia, eu a ouvia, pois a cada vez ela contava de forma
diferente. Eu pensava: o que vai mudar dessa vez? E no fim, nada mais era como
antes, nada mais era da mesma forma. Acredito que seja um pouco disso: quando
você conta algo pela primeira vez, tudo sai de um jeito para, dali em diante,
quando o processo se repetir, sair de forma diferente. O tempo é único.
Quando a autora falava sobre escrita, me
remeti a quem eu sempre escondi. Cresci rodeada de enciclopédias na casa de uma
tia próxima. Eu carregava aqueles livros enormes nas mãos, um de cada vez, só
para poder lê-los. E foi lendo que decidi que queria escrever. E, desde esse
tempo, a escrita já me intrigava, assim como intrigou Eliane. Eliane se fundiu
às histórias que ouvia; Eliane se dissolveu nos relatos que escrevia. Não é que
uma parte dela ficava lá, no entanto sua marca permanecia.
Esse trecho de seu livro me define totalmente
em relação à escrita:
“Às vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática. O que tento dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, ainda que numa tela digital, eu possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em algum momento, o rasgaria demais...”
Sinto que é isso, se não houvesse a
possibilidade da escrita, eu me rasgaria aos poucos, até sobrar nada. Mas será
que o que sobra é realmente nada? Até que ponto nos desprendemos do “resto” que
sobrou de nós? Eliane mostra que ela nunca se separou de suas mágoas e
sentimentos de infância. Quando fala de sua irmã, por exemplo. Eliane choca
quando evidencia que ela não se sentia ela mesma, tudo o que lhe faltava era
suprimido por um alguém que já não vivia, mas que ainda assim estava
vividamente servindo de exemplo para si mesma.
O luto que a autora descreve é forte,
embora sua escrita revele uma delicadeza natural. Mas foi excesso. Foi o
perfeito transbordar de si mesma.
“A percepção de que o mundo era um túmulo que me fundou”.
Há delicadeza na dor, mas a maior
questão é quanta dor há na delicadeza?
“A morte é um mundo sem palavras.”
Disse ela, me desconstruindo
internamente em meio a quem sou e a quem me propus a ser. Às vezes digo que sou
aspirante à escritora, mas a verdade é que é meu coração quem me escreve. E no
papel, eu me desmancho. Permito-me ser. Eliane se permitiu também.
Fiquei me perguntando se tudo isso era
real ou não, como o exemplo em que ela deixa cair uma chaleira de leite nas
pernas, mas consegui chegar à conclusão que isso pouco importa. Afinal, nossa escrita é real, quando a
história se concretiza por meio das palavras não importa se aconteceu ou não,
importa que está acontecendo naquele momento. Talvez escrever seja isso também:
transformar em realidade, transformar realidades.
“Quando eu era criança, eu quase morria muito.”
Eliane, se mostra em sua profundeza, nos
fazendo sentir na pele toda sua emoção vivida.
“Eu tinha sido fechada dentro do túmulo, para viver entre mortos-vivos”.
Consegue
imaginar? Ela nunca se livrou dos mortos que viviam dentro dela. Às vezes penso
que carrego comigo muito do que já não vive mais aqui, só que é difícil abrir
mão daquilo que sempre foi parte de você, mesmo que isso te consuma aos poucos.
Eu vi Eliane consumida.
Eliane
transbordou tanto que descreveu em suas linhas toda sua trajetória vivida. Nos apresentou
seu mundo de dentro, em meio aos seus trancos e barrancos, verdades dolorosas e
lembranças inesquecíveis de uma vida inteira carregada com um enorme peso. Eliane
nos disse tudo o que jamais conseguiu dizer antes. Sua escrita é a prova viva
de que Eliane foi carregada pelas profundidades de sua mente, e ao mergulhar em
seu abismo me encontrei habitando entre vãos que eu mesma permiti que se
criassem.
Quando terminei
a leitura, pensei que estava afogando em minhas próprias desventuras, no
entanto, eu estava liberta: agora eu podia ver o que antes guardei a sete
chaves para que jamais encontrasse. E foi por meio de sua escrita que consegui
me encontrar lá no fundo da caixa de memórias, me cutuquei, me tirei do
comodismo tão bem costurado a minha volta, passei a enxergar beleza na dor,
ainda que continue doendo.
Em Meus
descontentamentos, fui incomodada ao último para poder acordar da minha bolha. Estourei
a bolha. Estou livre.
Livre-se também. Leia Eliane Brum!
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