#Resenha: “Mecânica”: a celebração da incerteza - Thiago Nelsis
Nome: Mecânica
Páginas: 192
Publicação: Benfazeja
Ano de publicação: 2017
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Resenha por Jana Lauxen*
Dizem que,
enquanto humanos, somos mais parecidos do que diferentes. Apesar das distâncias
culturais, sociais, geográficas, políticas e religiosas que superficialmente
nos separam, existe lá no fundo uma unidade; algo que nos conecta e vincula, e
nos torna um só.
Somos
parecidos na dor, na perda e na angústia diante de uma existência finita, melindrosa
e incompreensível. Tememos a morte, não importa o canto do globo terrestre que
a gente habite. O tempo assombra a todos como um fantasma impossível de
exorcizar, num lembrete constante do fim. Compartilhamos a incapacidade de
explicar nossa existência, e a inutilidade em procurar sentido em sensações –
inclusive no próprio desespero surdo que tal incapacidade provoca.
Por isso,
independente das aparentes diferenças, existe uma essência que pertence a todos
e a cada um, não importam as fronteiras e as disparidades em nosso sistema de
crenças. Uma unidade que resiste e persiste bem lá no fundo do oceano que
carregamos em nós, onde a razão é incapaz de alcançar.
Disse tudo
isso porque, recentemente, tive a feliz oportunidade de ler o livro Mecânica (2017, Editora Benfazeja, R$35),
do escritor gaúcho Thiago Nelsis, e na obra o autor mergulha, com o destemor típico
dos desassossegados, nas águas íngremes que levam até esta unidade essencial,
ao mesmo tempo tão desconhecida e tão familiar.
A obra
reúne 72 poesias, que formam a medula não linear de um livro escrito por um
autor inquieto para um leitor tão inquieto quanto, criando um canal de diálogo mediado
e traduzido pela percepção de cada um. A lógica dá licença à intuição, levando
a conversa a um patamar mais sutil e, justamente por isso, mais perspicaz.
As poesias
de Mecânica possuem um gingado ao
mesmo tempo delicado e caudaloso, marcado por uma seleção pontual de palavras,
a fim de revestir a obra com uma roupagem tão filosófica quanto estética. Assim,
a inquietude gerada pelos absurdos cotidianos identificados pelo autor é
semelhante em quem escreve e em quem lê.
Não por
acaso, o livro se chama Mecânica, e
sua capa apresenta os mecanismos de um relógio, este senhor sem rosto e sem
nome que obedecemos sem questionar. Nossa consciência, afinal, se manifesta de
modo muito parecido com uma máquina, limitada pela sua própria falta de sentido,
e inserida em um contexto onde apenas a repetição garante o funcionamento. Movendo-se,
apesar de nunca sair do lugar.
Daí a ânsia
por transpor tais mecanismos e suas restrições, buscando reencontrar o ser,
além do estar; o tornar-se, mais do que o simples existir.
Thiago
Nelsis conseguiu, através de uma poesia sofisticada e ao mesmo tempo acessível,
dar voz ao eu que existe em nós. Em Mecânica,
reitera sua obstinação em ir mais fundo, sem temer que seus pés não encontrem
solo firme para pisar em segurança. Somente vai, e assim carrega junto seus
leitores, que percebendo a determinação de seu condutor, deixam-se levar oceano
adentro, ao fundo e avante, sem boias e nem máscaras de oxigênio.
Um grande
feito, em minha opinião, especialmente em uma época superficial como é a nossa,
na qual nos limitamos ao breve, ao óbvio e ao tolo. E é ali que nos afogamos,
em águas rasas.
No entanto,
tenha atenção, prezado leitor: não há, por parte do poeta, qualquer pretensão
ou interesse em explicar o inexplicável, e nem mesmo encher o vazio de uma vida
oca de significados. Thiago não busca racionalizar, participar ou compreender
os relógios, contratos e convenções que o rodeiam. Não. O que predomina em sua
obra é a observação atenta, porém desprovida de julgamento. A celebração da
incerteza, da inquietação e do conflito; sem oferecer, no entanto, a sugestão
de qualquer solução, saída, resposta ou posicionamento. Apenas a aceitação do
inexplicável, sem submissão, com respeito e certa naturalidade.
Mecânica é um livro que traz mais
perguntas do que respostas. Certeiro para estes tempos ligeiros, rasteiros e
líquidos em que, tal e qual um mecanismo automático e desprovido de instinto e
intuição, apenas nos movemos. Sem nunca sair do lugar.
*
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