Noite feita para durar - Parte 1
Ele
chegou tarde. A chuva estava molhando até mesmo quem não estava lá
fora, eu podia sentir os respingos em mim o tempo inteiro. Entrou
pela porta dos fundos. Pude ver seu semblante quando descobriu o
cheiro de pizza caseira vindo do forno. Pude sentir seu estômago
revirar. Pude vê-lo corar de vergonha pela hora que estava chegando
em plena sexta. Ele então secou os pés, como se isso secasse todas
as gotas que caíam no chão. Por fim, resolveu que valeria mais
tirar os sapatos e assim o fez. Entrou sem meia. Entrou e, assim que
me viu, parou bruscamente. Eu podia sentir seu olhar em mim, sem
desvios. Mas eu já estava dormindo, ou deveria estar, porque eu
podia ouvi-lo, eu podia senti-lo ali, mas meus olhos permaneciam
lacrados.
Está
no banheiro. Dez minutos se passaram. Minhas costas doem, mas eu
permaneço quieta, respirando suavemente, sem preocupações. A porta
do banheiro abriu. Pude ouvi-lo correr para o quarto, descalço e
provavelmente sem roupa. A porta do guarda-roupa bate, ele xinga
baixinho, deve estar pensando em não me acordar, mal sabe ele que
estou bem aqui, compreendendo cada um de seus movimentos. Ele vem do
quarto, seu cheiro de sabonete invade a sala, sinto sua presença bem
acima de mim e posso ouvi-lo respirar com certa dificuldade. Posso
sentir que ele está me encarando, mas sua respiração demonstra
preocupação, culpa. Eu não sei exatamente o motivo da culpa, mas
eu sei que ele está se culpando.
Ele
senta na beirada do sofá de onde estou – supostamente –
dormindo. Ele acaricia meu cabelo mal lavado, despenteado e ainda
úmido. Ele passa os dedos em meus lábios descascados pelo frio. Ele
me abraça levemente, como quem abraça um recém-nascido e posso
sentir seu engolir seco quando percebe que estou sem roupa por baixo
do cobertor grosso. Sinto gotas molhadas em minha face, provavelmente por culpa de sua preguiça extrema de secar o cabelo, ele xinga baixinho novamente. Quando faz
menção de se levantar, eu me contorço lentamente, tentando fingir
uma perfeita “acordada”, mas, como o esperado, falho bruscamente
e caio na gargalhada. Ele dá um pulo assustado, como se eu o tivesse
pegado no flagrante com a alma descoberta. Ele sente que estou
descontraída e relaxa um pouco, mas posso ver em seus olhos que a
preocupação continua ali.
Sento,
ainda com a metade do corpo por baixo do cobertor, mas sinto o frio
invadir minha parte de cima nua, o ofereço meu sorriso mais suave.
Sinto seus olhos famintos em mim, sem descer os olhos para nenhum
outro lugar, ele sabe o que tem ali, então mantém seus olhos presos
nos meus. Talvez procurando saber o que estou pensando, se vou lhe
dar uma bronca pela hora que chegou ou fazer milhões de perguntas
sobre por onde ele andou. E como não faço nada disso, ele começa
resmungar algo que não quero ouvir. Começa pedindo desculpas. Eu
assinto. Ele então bufa, como se estivesse segurando para não me
jogar contra o sofá e satisfazer seus desejos. Mas ainda vejo que em
seus olhos há vislumbres de sua culpa. Uma culpa que desconheço.
-
Não vai me perguntar nada?
Ele
solta, de repente, como se estivesse esse tempo inteiro ali
segurando. Eu sorrio, acaricio seu rosto belo, sua barba bem
crescidinha e seus lábios roxos, tudo tão lindo, tudo tão meu.
Olho em seus olhos quando respondo:
-
Não. Confio em você. E sei que, sendo qualquer coisa, pode esperar
um pouco, não é?
Ele
não fala. Eu perco a fala na mesma hora em que termino de dizer as
últimas palavras. Sinto suas mãos em mim, estão em todos os
cantos. Sinto sua boca voraz me possuindo em um beijo longo, de
desconcertar qualquer respiração tranquila. Sinto ele em mim, mas o
que mais importa é que posso sentir seu coração sossegado bater
acelerado por me ter ali, junto a ele. Vejo seus olhos me engolindo a
alma. Perco
os sentidos ainda o ouvindo sussurrar repetidas vezes um “obrigado
por ser assim” em meus ouvidos… E a última coisa que vejo é como o tempo derrama ainda mais chuva fazendo com que nos
percamos em pingos que não ultrapassam a janela, mas que nos dá o
vislumbre perfeito de uma noite feita para durar. Então, por que
estragar?
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