Noite feita para durar - Parte 1

by - dezembro 19, 2016


Ele chegou tarde. A chuva estava molhando até mesmo quem não estava lá fora, eu podia sentir os respingos em mim o tempo inteiro. Entrou pela porta dos fundos. Pude ver seu semblante quando descobriu o cheiro de pizza caseira vindo do forno. Pude sentir seu estômago revirar. Pude vê-lo corar de vergonha pela hora que estava chegando em plena sexta. Ele então secou os pés, como se isso secasse todas as gotas que caíam no chão. Por fim, resolveu que valeria mais tirar os sapatos e assim o fez. Entrou sem meia. Entrou e, assim que me viu, parou bruscamente. Eu podia sentir seu olhar em mim, sem desvios. Mas eu já estava dormindo, ou deveria estar, porque eu podia ouvi-lo, eu podia senti-lo ali, mas meus olhos permaneciam lacrados.

Está no banheiro. Dez minutos se passaram. Minhas costas doem, mas eu permaneço quieta, respirando suavemente, sem preocupações. A porta do banheiro abriu. Pude ouvi-lo correr para o quarto, descalço e provavelmente sem roupa. A porta do guarda-roupa bate, ele xinga baixinho, deve estar pensando em não me acordar, mal sabe ele que estou bem aqui, compreendendo cada um de seus movimentos. Ele vem do quarto, seu cheiro de sabonete invade a sala, sinto sua presença bem acima de mim e posso ouvi-lo respirar com certa dificuldade. Posso sentir que ele está me encarando, mas sua respiração demonstra preocupação, culpa. Eu não sei exatamente o motivo da culpa, mas eu sei que ele está se culpando.

Ele senta na beirada do sofá de onde estou – supostamente – dormindo. Ele acaricia meu cabelo mal lavado, despenteado e ainda úmido. Ele passa os dedos em meus lábios descascados pelo frio. Ele me abraça levemente, como quem abraça um recém-nascido e posso sentir seu engolir seco quando percebe que estou sem roupa por baixo do cobertor grosso. Sinto gotas molhadas em minha face, provavelmente por culpa de sua preguiça extrema de secar o cabelo, ele xinga baixinho novamente. Quando faz menção de se levantar, eu me contorço lentamente, tentando fingir uma perfeita “acordada”, mas, como o esperado, falho bruscamente e caio na gargalhada. Ele dá um pulo assustado, como se eu o tivesse pegado no flagrante com a alma descoberta. Ele sente que estou descontraída e relaxa um pouco, mas posso ver em seus olhos que a preocupação continua ali.

Sento, ainda com a metade do corpo por baixo do cobertor, mas sinto o frio invadir minha parte de cima nua, o ofereço meu sorriso mais suave. Sinto seus olhos famintos em mim, sem descer os olhos para nenhum outro lugar, ele sabe o que tem ali, então mantém seus olhos presos nos meus. Talvez procurando saber o que estou pensando, se vou lhe dar uma bronca pela hora que chegou ou fazer milhões de perguntas sobre por onde ele andou. E como não faço nada disso, ele começa resmungar algo que não quero ouvir. Começa pedindo desculpas. Eu assinto. Ele então bufa, como se estivesse segurando para não me jogar contra o sofá e satisfazer seus desejos. Mas ainda vejo que em seus olhos há vislumbres de sua culpa. Uma culpa que desconheço.

- Não vai me perguntar nada?

Ele solta, de repente, como se estivesse esse tempo inteiro ali segurando. Eu sorrio, acaricio seu rosto belo, sua barba bem crescidinha e seus lábios roxos, tudo tão lindo, tudo tão meu. Olho em seus olhos quando respondo:

- Não. Confio em você. E sei que, sendo qualquer coisa, pode esperar um pouco, não é?

Ele não fala. Eu perco a fala na mesma hora em que termino de dizer as últimas palavras. Sinto suas mãos em mim, estão em todos os cantos. Sinto sua boca voraz me possuindo em um beijo longo, de desconcertar qualquer respiração tranquila. Sinto ele em mim, mas o que mais importa é que posso sentir seu coração sossegado bater acelerado por me ter ali, junto a ele. Vejo seus olhos me engolindo a alma. Perco os sentidos ainda o ouvindo sussurrar repetidas vezes um “obrigado por ser assim” em meus ouvidos… E a última coisa que vejo é como o tempo derrama ainda mais chuva fazendo com que nos percamos em pingos que não ultrapassam a janela, mas que nos dá o vislumbre perfeito de uma noite feita para durar. Então, por que estragar?


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